Para Aurora, nossa luz do amanhecer, um relato sobre a nossa jornada para a sua chegada na manhã
 ensolarada de 14 de maio de 2021.
 Filha, você foi muito desejada e planejada. Nos preparamos e esperamos muito pelo positivo.
 Quando ele veio, em agosto de 2020, depois de pouco mais de um ano de tentativas, sentimos
 uma alegria doce e leve. Escolhemos a equipe que nos acompanharia e que nos daria suporte
 durante todo o processo. A decisão por uma assistência humanizada já havia sido tomada anos
 antes. A gestação evoluiu sem intercorrências e com tranquilidade (curtimos muito nossa casa),
 apesar dos tempos estranhos e imprevisíveis em que estamos vivendo (você foi concebida e
 gerada durante uma pandemia). O home office permitiu que eu trabalhasse durante toda a
 gestação, por vezes, até passei da conta, mas ajudou a deixar tudo preparado. Nas últimas
 semanas a ansiedade começou a bater e a expectativa para a sua chegada só crescia. A data
 provável do seu parto era 16 de maio de 2021, dia do aniversário do seu avô, mas a mamãe sabia
 que você não chegaria até lá…

 No dia 30 de abril participei do chá de bençãos com a doula Lena e especialmente três coisas
 me marcaram: a primeira foi uma das frases que, dentre as opões que ela nos deu, escolhi para
 representar aquele meu momento. Dizia que “a respiração é minha amiga e me ajudará a
 receber meu bebê”. Os muitos anos de ballet já haviam me ensinado a importância da respiração
 para a conexão da mente com o corpo e para o foco e a concentração. Eu disse que não iria parir
 você, minha filha e,sim, que iria respirar você. A segunda coisa que me marcou foi a visualização
  do parto que ela nos pediu para fazer. Me lembro de descrever
do parto que ela nos pediu para fazer. Me lembro de descrever
 os fatos, mas, o mais curioso, foi o silêncio que permeava toda
 a minha narrativa. Mesmo sabendo que um parto evoca sons,
 recomendações, vocalizações e gritos, eu não ouvia
 absolutamente nada. Apenas um silêncio profundo. Por fim, a
 terceira coisa tratava-se da carta que a Lena tirou para cada
 uma das gestantes e que trazia uma palavra direcionada para a
 nossa meditação até o parto. Para mim veio a carta FÉ (Confiar
 no que não se vê e não se conhece. Caminhar com firmeza na
 escuridão na certeza de que alguém guia nossos passos.
 Acreditar no que não se compreende. É a força que nos
 impulsiona, nos protege, nos cura). Confesso que esperava uma
 carta como a da Confiança ou da Coragem, que se aproximavam
 mais de como eu me sentia naquele momento. Mas no fim das
 contas, a gente nunca sabe de nada mesmo…
 No dia 12 de maio, numa quarta a tarde, comecei a sentir um peso no baixo ventre e uma
 pressão no reto. Mais tarde, senti cólicas leves e contrações de treinamento mais fortes e
 frequentes. Eram mais como um incômodo. De madrugada as contrações e cólicas continuaram,
 mas não me impediram de dormir.
 No dia 13 de maio pela manhã o tampão mucoso saiu. As contrações de treinamento e a pressão
 no reto continuaram, mas ainda como um desconforto. Embora soubesse que ainda poderia
 levar dias, a saída do tampão me trouxe um sentimento de que eu precisava deixar tudo
 resolvido. Trabalhei o dia todo e muito, até as 8 da noite, tanto que não me recordo de sentir
 nada de diferente (nem dores e nem incômodos), tamanho era o foco para finalizar o que fosse
 possível. Também, por isso, não consegui descansar após o almoço (recomendação estrita da
 doula Lena). Após um banho demorado e um jantar leve, me deitei por volta das 23hs e então
 comecei a sentir novamente o desconforto das contrações de treinamento.
 Já na sexta, 14 de maio, dia em que eu tinha uma consulta pré-natal marcada, por volta de 1 da
 manhã, me levantei e fui para a sala para não incomodar seu pai, já que estava rolando na cama
 sem conseguir dormir. Percebi que as contrações de treinamento ficaram um pouco mais
 doloridas e ao medir os intervalos pela primeira vez, confirmo que ainda estão irregulares, entre
 7 e 4 min.
 Foco na respiração e tento centrar a minha presença naquele momento. Por volta das 3:30 da
 manhã as contrações se intensificam, com intervalos a cada 3 e 4 min. Ensaio alguns movimentos
 na bola de pilates, mas eles ficam cada vez menos agradáveis. As 4:19 tentei contato com a
 Rapha, nossa EO, sonhando com uma avaliação de dilatação (que nunca cheguei a fazer e nem
 sei como é o tal exame de toque) para que eu pudesse, ingenuamente, prever alguma coisa.
 As 5:25hs decido ir para o chuveiro para alívio da dor. Nesta hora seu pai acorda e protesta por
 eu não o ter chamado antes. Ele faz a contagem das contrações, e já estamos com intervalos de
 3 min. A água quente do chuveiro na lombar ajuda muito, e dá a impressão, inclusive, de que as
 contrações ficaram tão mais leves que quase não incomodavam mais. Então, saio do chuveiro
 para tentar descansar um pouco.
 As 6:07 a EO responde e o papai avisa que as contrações começaram por volta das 1h30hs e que
 naquele momento já estão com intervalo de 2 a 3 minutos. Na cama as contrações impedem o
 descanso e então as 6:23hs tento voltar para o chuveiro. Me lembro de que os pensamentos
 teimavam em voar para longe e os resgatava pensando: “Este é o momento do meu parto, a
 única e mais importante coisa em que devo pensar, focar e respirar”. Como tenho a pressão
 muito baixa, com a água quente, ela cai ainda mais e não era mais seguro ficar ali.
 Volto para a cama e as 6:37hs seu pai liga p EO e ela conversa comigo. Diz que provavelmente o
 parto aconteceria naquele dia, mas que ainda levaria um tempo, já que eu estava conversando
 bem e que as contrações pareciam irregulares. Ela sugeriu que eu tomasse um buscopan e
 usasse compressas quentes pois, caso fosse um alarme falso, as dores cessariam. Ouvir a
 possibilidade de um falso TP me deixou sem chão. “Como assim falso? Se isso que estou sentindo
 é falso, não quero experimentar o verdadeiro!”. As 6:48 o papai manda o endereço para a EO
 que prevê sua chegada dali umas duas horas.
 Até então todo o nosso contato havia sido feito com a EO, pois exatamente na semana da nossa
 data provável de parto, tivemos uma mudança (institucional) de doula. Não sabíamos quem nos
 acompanharia oficialmente, pois isto seria definido na consulta pré-natal que ocorreria no dia
 14 a tarde. Como não havia dado tempo, a EO entrou em contato com a doula Yasmin, disponível
 naquele momento, e as 7:00hs ela entrou em contato com o papai.
 As 7:10hs o papai saiu para ir à farmácia comprar o buscopan e uma bolsa de compressas, pois
 não tínhamos em casa. Por volta das 7:30hs tomei o buscopan e iniciei as compressas quentes
 no ventre e lombar. Mas as contrações ficaram mais regulares e fortes e comecei a vocalizar e a
 massagear a lombar a cada expiração. Nesta hora pedi para o seu pai buscar um óleo para ajudar
 na massagem e expliquei como ele deveria fazer, já que estava difícil me concentrar na
 respiração, na dor, na frequência, no intervalo, nos movimentos. Me mantinha sentada na cama
 nos intervalos, e quando a contração se iniciava, eu me levantava e ficava de frente para a
 parede, usando-a como apoio, enquanto seu pai fazia a massagem nas expirações. Nesta hora,
 em um dos intervalos, sentada na cama, eu chorei. Eu disse que não conseguiria. Eu quis desistir.
 Eu chorei. Seu pai foi a palavra de incentivo. Ele repetia que eu daria conta sim, que eu já estava
 dando conta. Que daria tudo certo. Eu acreditei, confiei e, também, sabia que não havia o que
 fazer, além de seguir em frente. A noção das horas já havia sumido e se resumia à preparação
 para a próxima onda de dor. Concentra, inspira, expira, vocaliza, massageia…até passar. Nestes
 momentos tentava racionalizar e adivinhar quanto tempo ainda levaria. Comecei a especular
 mentalmente a minha dilatação e, seguindo a lógica de 1cm a cada hora, previ que poderia
 adentrar a tarde daquele dia. Me arrependi por não ter descansado na tarde do dia anterior.
 Estava muito cansada. E deitada era impossível ficar.
 As 8:10hs tentei uma nova chuveirada e percebi a saída de um pouco de sangue. Não durou
 muito tempo, pois o chuveiro já não aliviava mais. Avisei para o seu pai, em um tom já meio fora
 de mim.
 Voltei para a cama, no esquema: senta, descansa, levanta, apoia na parede, respira, vocaliza,
 massageia. Nos intervalos eu mesma fiz a contagem de contrações, que já estavam a cada 2 min
 com duração de 30s. Pedi ao seu pai para avisar a Dra Quésia, nossa GO, as 8:22hs. Ela
 prontamente disse que iria para a nossa casa e as 8:28 seu pai passou o nosso endereço.
 As 8:25hs seu pai avisa para a EO e para a doula que a Dra Quésia estava a caminho de casa e a
 doula pede para que as contrações fossem marcadas por meia hora. A dor se torna mais intensa.
 As 8:31hs seu pai fez um áudio para a GO sobre o ritmo contrações. As 8:45hs seu pai reportou
 para a doula que o ritmo das contrações se mantinha e as 8:50 a doula avisa que está a caminho
 da nossa casa.
 Exausta, tentei descansar na cama apoiada em uma montanha de travesseiros, mas então veio
 uma contração com a sensação de que algo sairia, escaparia. Me levantei desesperada para
 chegar a tempo no vaso sanitário e as 9:03hs a bolsa estourou. Muito sangue e uma vontade
 absurda de fazer força. Aviso para seu pai e peço para que ele reporte para a equipe. Volto para
 o chuveiro, onde o sangue poderia escorrer, e vem o primeiro puxo. Agacho e grito. Dra. Quésia
 aparece do outro lado do box embaçado, as 9:10hs. Segundo puxo. Agacho e grito. Ela se agacha
 comigo e diz palavras de força. Me lembro da voz calma e suave dela me trazendo para um lugar
 de calma. Ela diz para irmos para a maternidade. Não dava tempo de fazer uma avaliação, mas
 era possível que eu estivesse com 9cm. Me lembro de contra-argumentar, dizendo que não dava
 tempo de chegar lá. Que Aurora estava vindo. Mas decidimos ir. Saio do chuveiro, e só me enrolo
 num roupão. Vamos logo! Vou caminhando até o elevador, aperto o botão. A porta se abre e lá
 está Yasmim, a doula. Terceiro puxo. Agacho e grito. Entramos no elevador rumo a garagem, por
 volta de 9:15hs. Ali decidimos que a Dra. Quésia iria conosco no carro e a doula nos encontraria
 na maternidade, assim como a EO.
 Seu pai entra no carro, tira a cadeirinha para termos mais espaço no banco de trás. Abro a porta
 de trás do motorista. Não entro no carro. Apoio as duas mãos no farol traseiro. Quarto puxo.
 Agacho e grito. Coloco a mão e sinto você coroando. Aviso que não daria tempo e que você
 nasceria ali mesmo. Seu pai sugere que voltemos para a casa. Eu digo que não dá. Dra. Quésia
 examina e diz que não dá. Tiro o roupão, estendo no chão juntamente com uma toalha que eu
 forraria o banco do carro e me coloco na posição de Gaskin. Seu pai meio desnorteado
 perguntou o que deveria fazer e prontamente Dra. Quésia diz: “Vai assistir sua filha nascer”.
 Quinto puxo. Respiro e deixo sua cabeça sair naturalmente. Olho por entre as pernas e vejo
 você. E vejo seu pai. Perco a concentração e fico na dúvida se deveria fazer força, me esqueço
 da respiração em jota e tudo o que treinei com a Júlia na fisioterapia pélvica. Sexto puxo. Faço
 força, olhando entre as minhas pernas, e vejo você nascer, direto nos braços do seu pai. Na
 garagem, nasce Aurora as 9:24hs do da 14 de maio de 2021. Você chora. Seu pai te passa por
 entre minhas pernas e te pego nos braços. Nos acomodamos, ali mesmo, no chão. Seu pai, eu e
 você. Nos apresentamos. Dra. Quésia abre a mala da maternidade para buscar uma manta e um
 gorro para te aquecer. Ali, tudo junto e misturado, alívio, fluidos, surpresa, adrenalina, sangue,
 calmaria, sol e silêncio.

 Vamos a maternidade. Seu pai busca mais um roupão e toalhas. Entro no carro com você no
 colo. Contato pele a pele. Entro caminhando pela maternidade (que estava lotada e sem vagas)
 rumo a sala para a dequitação da placenta. Seu pai estava assinando os papeis de internação.
 Algumas contrações e a placenta nasce. Laceração de grau 2. Precisamos ir para o bloco para
 dar os pontos. Você sempre comigo, ainda ligadas. No bloco, sentada na cadeira enquanto
 preparavam a cama, aviso para Dra. Quésia que minha pressão está caindo. Conheço a sensação.
 Vou desmaiar. Acordo com seu pai de um lado, já paramentado, Dra. Quésia do outro e uma
 enfermeira a frente, passando algo próximo do meu nariz. Finalmente seu pai corta o cordão. A
 doula pergunta se queremos o carimbo da “árvore da vida”. Por que não?

 Seu pai ficou com você nos braços enquanto eu me deitei na cama para levar os pontos. Comecei
 a chorar. Era meu corpo finalmente saindo do estado de alerta. Que loucura! Eu consegui. Nós
 conseguimos. Agora a palavra FÉ fez todo sentido. Foi preciso muita confiança no desconhecido.
 Foi preciso seguir em frente, mesmo sem conseguir visualizar o que vinha em seguida, crendo
 que estávamos amparadas (em momento algum passou pela minha cabeça que algo poderia dar
 errado). Foi preciso acreditar no incompreensível. Foi preciso ter fé de que a força do feminino
 é potência e proteção. Sua chegada mostrou, mais uma vez, que não há controle ou
 previsibilidade sobre o natural, sobre o instintivo. E para nós, que nunca cogitamos um parto
 domiciliar, assim o tivemos, e praticamente, apenas nós três, todo o tempo. No fim das contas,
 a gente nunca sabe de nada mesmo…

 E claro, pensando bem, meu TP e parto foram sim de um grande silêncio como eu havia
 visualizado naquele chá de bençãos. Demandou uma presença, controle e protagonismo que
 somente o silêncio nos permite encontrar. Meu corpo sabia o que fazer, eu sabia o que fazer.
 Não havia ninguém me dizendo qual era o próximo passo ou como as coisas estavam evoluindo.
 Eu só podia ir em frente. Eu e você. Embora tenha tido muita vocalização, respiração, choro e
 grito….se pudesse, eu definiria nossa jornada e nosso encontro exatamente com a palavra
 silêncio.
 Uma conexão extraordinária. Bem-vinda filha
 
 




